Vinum bonum laetificat cor hominis - Psalmo - 104:1
A religião hebraico-cristã é cheia de conotações com o vinho.
“O vinho alegra o coração”- Salmo 104:15.
“Dai bebida forte ao que está para perecer, e o vinho ao que está em amargura de espírito” Provérbios 31:6.
Por outro lado, o estado alterado da embriaguês não era valorizado ou aceito na religião hebraica. Noé, após o dilúvio tornou-se agricultor, plantou uma vinha e dela bebeu e embriagando-se, desnudou. Seu filho Cam ridicularizou seu próprio pai. Aí a embriaguês veio ser a caracterização da miséria humana e foi condenada em vários versos bíblicos.
“Busquei no meu coração como estimular com vinho a minha carne, sem deixar de me guiar pela sabedoria, e como me apoderar da estultícia, até ver o que era bom que os filhos dos homens fizessem debaixo do céu, durante o número dos dias de sua vida”. Eclesiastes 2:3.
O aspecto rubro e encorpado do vinho foi associado intimamente com o sangue. Trazia vida, possuia o spiritus (alcool), era passional.
Clemente de Alexandria viria proclamar que o vinho era o sangue da Terra. A Terra também receberia sangue humano, como o sangue de Abel que a semeou e regou e provou ser frutífero. [1]
Interpretando antropologicamente esta passagem do fraticídio de Abel, Cain seria a sociedade agrária neolítica, com seus cultos de fertilidades, onde os frutos da Mãe-Terra era ofertado em libações. Abel é a alegoria do pastoralismo nômade. Era esperável a aceitação do holocausto de Abel, tendo em vista o significado da oferta e perda em um sacrifício onde um animal é entregue[2]. Portanto, mais dramático e custoso que uma oferenda vegetal.
Com Abel, por meio da morte de um vivente, dá-se a maior e a mais cara dádiva: a Vida.
Rejeitado, Cain conspirou e feriu de morte seu irmão. E a terra bebeu o inocente sangue de Abel.
Enquanto a civilização surgiu de sociedades agrárias do Egito e Mesopotâmia, caberia aos pastoralistas habiru e medo-persas a emergência do monoteísmo. A síntese dessas culturas conflitantes viria não com a Pax Romana, mas durante ela quando o Cristianismo fundiu os sacrifícios de Abel e Cain na Santa Ceia: o Pão (os cerais) e o Vinho (o sangue) representando o sacrifício do Inocente.
Deste modo o Cristianismo é a religião do vinho por excelência: extinguiu-se os sanguinolentos holocaustos, embora retendo seu símbolo nessa figura líquida. Não supreende que o primeiro milagre de Jesus Cristo fora transformar água em vinho em Caná[3]. Ainda é notavel a comparação “Sou a Videira verdadeira e meu Pai o lavrador”.[4]
Quase contemporâneamente à essa safra que floresceu o Cristinianismo, ocorre outra transmutação da religião do sangue em religião do vinho, no proeminente no culto greco-romano de Dionísio/Baco.
O irreverente Dionísio era a deidade do vinho e de seus poderes de socialização e cura, in vino sanitas, diria Plínio, o Velho e até Paulo concordaria, como algums médicos de hoje defensores da dieta mediterrânea, recomenda seu uso medicinal[5]. Além do vinho, Dinonísio era o patrono do teatro, civilização, agricultura e o Eleutherios (o Libertador).
O culto enteogênico de Dionísio parece predatar a invasão dos helênos, sendo assimilado no panteão olímpico e depois revivado nas Religiões de Mistérios do Helenismo e Império Romano, provando sua vitalidade. O tema de morte-renascimento presente no mito dionisiano representa a imortalidade, como a vinha que sobrevivia nos terrenos pedregosos, em climas sem misericódia e poucas sementes era o suficiente para fazê-la brotar. Tal forma, Dionísio espremeu o primeiro vinho das frutas nascidas sobre o corpo de um de seus amantes, trazendo-o de volta em espirito.
Na Bacae de Eurípedes as mulheres, castiças donas-de-casa gregas, saiam à noite, cantando enebriadas pelo deus-vinho, subiam as montanhas onde dançavam em um enthusiamos sem fim pela madrugada toda.
Dionísio e o vinho rompia barreiras na Grécia antiga. Mesmo fossas sociais evaporavam, como nos festivais de Anthesteria, quando as uvas brotavam, nesses três dias escravos e mestres celebravam juntos, brindando o novo vinho, arranjando novos casamentos e os espíritos dos mortos voltando à superfície para alegrar com os vivos.
Nietzche compararia em seu “O Nascimento da Tragédia”, o comportamento selvagem de Dionísio, passional e intoxicante, com o mais ordeiro Apolo. Isso sugeriu a Vyacheslaf Ivanof a teoria que a literatura e as artes dramáticas teriam origens no culto de Baco.
Nunca estancou rios de vinhos nas festas dos bacanas. Poetas se inspiraram pelo inebriante paladar.
Mesmo o Islam, que em sua versão corânica [6] não hesitou em condenar a bebida, há a apreciação do cálido elixir da vida pelos grandes poetas sufi, como Omar Khayyam e Rumi, e mesmo o Alcorão declara a esperança escatológica que no paraíso correrão "rios de vinho - uma delícia para os que o bebem". [7]
Quando bebo, ouço mesmo o que não me pode dizer a minha bem amada!
Mais vale uma ânfora de vinho do que o poder, a glória e as riquezas.
O vinho libertar-te-á das névoas do passado e das brumas do fututro.
O vinho inundar-te-á de luz, livrando-te dos grilhões de prisioneiro.
Omar Khayyam – Rubaiyat
Omar Khayyam viveu em uma das áreas viniculturista mais antigas da humanidade. Estima que o cultivo da vinha seja originária da Anatólia oriental, sul do Cáucaso e noroeste do Irã. E de lá difundiu, ainda na idade do bronze, por distantes lugares, como atesta o termo wanderwort *win-o em proto-indo-europeu, *wayn em proto-semítico e ğvino em georgiano[7]. O mais antigo sítio arqueológico cuja presença do vinho foi identificado é Shulaveri, Geórgia, com data estimada de 6.000 anos a. C. Alguns séculos depois aparece até mesmo na China.
E ainda o vinho viajou. Seja pelas ordens medicantes medievais, que aonde eregiam suas casas e mosteiros plantavam vinhedos, seja pelos missionários pós-Vasco da Gama, que expalharam o cultivo para sagrado uso. Também foi a preciosa jóia líquida levada por refugiados protestantes huguenotes franceses para a África do Sul, onde ainda existe uma renomada tradição vinícola. Mirando em outras terras para refúgio, os huguenotes trouxeram cachos e mudas para a fria e puritana Nova Inglaterra, ainda que não seja lá tão famosa, esses vinhedos deram nome até à uma ilha, Martha’s Vineyard.
O vinho viajou e trouxe poder. Lembra-me do malfadado tratado de Methuen (1703) entre Inglaterra e Portugal, conveniente chamado de “Panos e Vinhos” e não de “Proteção contra Espanha e os Franceses”.
Regiões e populações inteiras na Europa, Cone Sul, Califórnia, Austrália tragam suas riquezas desse fruto sanguínio, geração após geração.
O vinho traz poder. Pedantes connoisseurs demonstram poder sendo capaz de escolher o vinho. Já o pobre beberrão, constrangido é escravo da versão de mesa, ou de outras bebidas menos nobres.
É o fogo unido em água. É o rubi vertido no cálice.
Finalmente, o vinho traz benção:
Baruch Atah Adonai Elohainu Melech ha'olam, Bore p'ree hagafen.
Bendito És Tu, Senhor nosso Deus, Rei do universo, Criador do fruto da vide.
Tradicional benção judaica sobre o vinho, o Kiddush.
[1] Gênesis 4:8-15
[2] Perspectivas de Buchanan Gray e Evans-Pritchard sobre sacrifícios.
[3] João 2:1-12
[4] João 15:1
[5] 1 Timóteo 5:23.
[6] Sura 5:90, Sura 2:219.
[7] Sura 47:15
[8] OnlED (Online Etymology Dictionary). 2004. (http://www.etymonline.com/).